Capítulo 6
Vozes na Fogueira
O grupo caminhava havia horas, atravessando clareiras enevoadas e trilhas onde as árvores pareciam sussurrar entre si. A tensão do ataque ainda pairava no ar, mas a presença daquele estranho tornava o ambiente… diferente. Mais seguro, de certo modo.
Lian não aguentou mais. Apontou para ele, que andava à frente com passos firmes e o manto roçando as folhas.
— Ei, quem é você, afinal?
O homem parou, virando-se com expressão cansada. Os olhos dourados brilharam sob o capuz, e por um instante, Lian sentiu um frio na espinha.
— Se fosse inteligente, garoto, a primeira coisa que faria era aprender a não gritar na floresta.
A voz era rouca, carregada de anos e de algo que soava como desdém — mas estranhamente, não era cruel. Tinha o tom de quem está acostumado a lidar com cabeças-quentes.
Mira bufou, cruzando os braços.
— Você poderia pelo menos dizer seu nome…
Ele a encarou por um segundo, como se decidisse se valia a pena responder.
— Dareth.
A resposta veio curta, seca, como uma pedra atirada na água.
Kael se aproximou.
— E o que era aquilo que enfrentamos? Aquela coisa…
Dareth retomou a caminhada.
— Sombra degenerada. Um fragmento da Essência corrompida. Esse lugar está cheio delas. Sorte a de vocês que ainda respiram.
O grupo trocou olhares, e mesmo resmungando, seguiram atrás.
Quando o céu assumiu tons azulados e o ar ficou mais denso, Dareth ergueu a mão.
— Aqui.
Acampou próximo a uma árvore gigante de raízes elevadas, o suficiente para fazer abrigo. Com um gesto, fez brotar pequenas chamas azuladas em círculos de pedra.
Sentou-se e observou os quatro, que ainda hesitavam.
— Sentem-se. Comam. E se tiverem perguntas, façam agora. Antes que o sono de vocês seja interrompido por coisa pior.
Lian se aproximou, ainda com a marca avermelhada na mão.
— Por que a gente sente isso? Esse… poder?
Dareth encarou a chama por um instante.
— Porque vocês não são daqui.
A voz veio baixa, quase um rosnado.
— Porque quando o véu entre os mundos se rompeu, algumas almas foram marcadas. E as marcas… cobram um preço.
Silêncio.
Nira sussurrou:
— Que preço?
Dareth ergueu os olhos.
— Sobrevivência. Ou vocês aprendem a lidar com isso, ou acabam consumidos. A Essência não perdoa idiotas.
Apesar do tom áspero, havia algo reconfortante na forma como dizia aquilo. Como um velho resmungão que se importa, mas disfarça.
Ele pegou um pedaço de carne seca de uma sacola de couro e atirou na direção de Lian.
— Come. E se quiser continuar vivo amanhã, pare de tentar ser herói sem saber o nome do inimigo.
As chamas da fogueira dançaram, projetando sombras nas árvores. O som da noite voltou, mas agora com uma estranha sensação de familiaridade.
Eles comeram em silêncio, enquanto Dareth mantinha a vigília.
As chamas crepitavam, lançando pequenas faíscas no ar parado da floresta. O silêncio era pesado, mas não hostil. Só o som dos insetos e o farfalhar das folhas preenchiam o espaço entre as respirações.
Kael quebrou o silêncio primeiro.
— Então… isso acontece com todas as crianças? Esse lance… da marca?
Dareth bufou, mexendo no fogo com um galho.
— Não. Só com os que carregam Essência. E nem sempre são crianças.
Olhou de canto para Kael, como se o avaliasse.
— Mas os mais jovens sentem primeiro. A Essência é viva. Escolhe quem vai carregar e quem vai se perder.
Mira, com os olhos fixos nas labaredas, perguntou em voz baixa:
— Por quê?
Dareth ergueu uma sobrancelha.
— Porque o mundo não é justo, garota. E porque há algo vindo pra cá… algo que acordou quando o véu se rompeu.
Lian franziu o cenho.
— E o meteoro? Ele tem a ver com isso?
Dareth sorriu, um sorriso amargo, quase imperceptível.
— O meteoro foi só a faísca. O véu já estava rachando muito antes disso. Elyrion sabia.
Ao ouvir o nome, Nira se inclinou.
— Elyrion? Quem é esse?
Dareth se calou por um instante. Seu olhar ficou distante, como se enxergasse além da floresta, além das estrelas.
— Um nome antigo. Um nome que devia ter sumido. Mas se vocês ouviram esse nome… então as coisas estão piores do que eu pensava.
Kael apertou o punho.
— Ele é o vilão?
Dareth soltou um som entre o riso e o suspiro.
— Neste mundo, garoto, vilões e heróis são só peças de um jogo velho demais. Elyrion é… outra coisa.
Ele lançou um pedaço de lenha no fogo.
— Se quiserem viver, parem de colocar nomes em coisas que vocês não entendem.
Lian hesitou, mas insistiu.
— E nós? O que a gente vira com essas marcas?
Dareth virou-se, o rosto meio oculto pela luz da fogueira.
— O que vocês quiserem. Se aprenderem a controlar a Essência, podem moldar a si mesmos. Se não… vão virar o mesmo pó que engole outros tolos por essas terras.
Ninguém falou por um tempo.
Então Mira respirou fundo.
— Você… vai ensinar a gente?
Dareth olhou para o céu, como quem conversava com as estrelas.
— Eu devia largar vocês aqui. Como fizeram comigo uma vez.
Pausou.
— Mas… parece que ainda tenho uma dívida com esse mundo. E vocês…
Afastou o capuz, deixando os olhos dourados fitar os quatro.
— São minha maldita responsabilidade agora.
Mesmo com o tom ríspido, os quatro sentiram um estranho alívio. Havia segurança naquela grosseria.
Dareth se levantou, apagando parte da fogueira com o pé.
— Amanhã cedo seguimos pro Vale Esquecido. Durmam enquanto podem. Essa estrada engole quem anda distraído.
Virou-se e sumiu entre as árvores, deixando os quatro sozinhos com as brasas morrendo e mil perguntas não ditas.
Mira foi a primeira a falar, em tom baixo:
— Eu gosto dele.
Kael riu.
— Ele parece meu avô.
Lian olhou para a marca na mão, o calor ainda vivo ali.
— Seja quem for… acho que a gente vai precisar dele.
A noite os envolveu, e os sons da floresta voltaram.
Continua no Capitulo 7...
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